António Filipe

O Areio dos Bêbados

No artigo sobre a Barragem de Bitetos, é feita referência a um topónimo muito curioso: “Areio dos Bêbados”. É com este nome que aparece no relatório do Eng.º Ezequiel de Campos, e por este nome era conhecido pelas pessoas de Bitetos. Então, onde ficava o “Areio dos Bêbados”? Um pouco a montante da ribeira de Vale da Rica, na margem direita, a cerca de 300 metros do Cais de Bitetos. E digo ficava, porque agora está quase coberto pela subida da água do Douro, e, o que resta, coberto por um canavial. Atá à construção da barragem de Crestuma-Lever, era um areal relativamente extenso e composto por “areia fina”, que era extraída e transportada por barcos a remos até ao Cais de Bitetos. E as cheias do Douro iam repondo a areia que era retirada.

Sendo um nome curioso, há-de ter uma explicação, que até parece muito óbvia. Mas tentemos perceber donde lhe veio a fama e o proveito.

Antes da construção do cais de Bitetos (1939), os barcos que vinham do Douro tinham como local quase obrigatório de paragem, Bitetos. E faziam-no, quer neste areio, quer no areio que ficava a jusante na direcção de Fontambom / Sra da Guia, sobretudo até 1879, em que a abertura da linha do Douro até à Régua, começou a permitir o escoamento de produtos do Alto Douro por via férrea.

Alguns lembrar-se-ão de ouvir contar histórias passadas com marinheiros que vinham nesses barcos, e que, parando para descansar, resolviam tirar vinho das pipas e beber confraternizando com a população local. Dizia-se, também, que se organizavam festas em terra permitindo que a distracção dos marinheiros abrisse as portas para quem quisesse entrar nos barcos. Esse vinho que era retirado seria substituído por água do rio.

Mas seria mesmo assim? Haveria, de facto, conhecimento desse tipo de “crime”, de roubo e adulteração da qualidade do vinho?

Há um trabalho excelente do Professor Fernando de Sousa da Universidade do Porto, intitulado “Uma devassa terrível ao Alto-Douro (1771-1775)”, que explica o que se passou com esta “auditoria”, aos vinhos do Douro, e a toda a espécie de irregularidades que diziam respeito à produção, transporte e comercialização, pondo em causa a sua qualidade e bom nome. Uma das infracções encontradas diz respeito à “Extracção de vinho pelo batoque, das pipas conduzidas” e foram condenadas 23 pessoas. Ora, fácil será compreender que o vinho retirado teria que ser substituído. Quer fosse pelo chamado “vinho de ramo” (vinho de qualidade inferior), ou água. Em face disto o Rei D. José I promulga um Alvará Régio em 16 de Novembro de 1711 e estabelece penas adequadas para os prevaricadores, depois de fazer saber que tinha tomado conhecimento de todas as irregularidades cometidas e, a certo ponto do documento estabelece:

elegerão os oficiais, que julgarem necessários para o bom governo desta Companhia; assim na cidade do Porto e no reino, como for a dele, compreendem na sua generalidade as nomeações de escrivães para o comissário de entre ambos os rios e dos outros comissários com os seus escrivães na Pala, Porto Manso, Bitetos, Bem Viver, Peso da Régua e mais portos do Douro e lugares das feitorias e fábricas que necessário for.

Rei D. José I

Bitetos fazia, portanto, parte dos locais “sensíveis, onde deveria ser colocado um escrivão que, admito, teria algumas funções de controlo e vigilância. Terá sido suficiente? Não temos a certeza mas, as histórias que se contavam, pareciam bem mais recentes.

Seja como for, para mim, o Areio dos Bêbados ainda lá está, e terá feito justiça ao seu nome. Noutros tempos.

António Filipe
Médico
Reside em Alpendorada, Várzea e Torrão