Daniel Descomps convidou-me para me deslocar a França e fazer uma palestra e exposição fotográfica sobre brinquedos com a natureza.
Transcrevo a minha intervenção. Transmitam aos vossos filhos como brincávamos na nossa infância.
Pujols,11 de agosto de 2018
A natureza ensina-nos a brincar
Quero agradecer a Daniel Descomps e aos "Amis de la Maison du Jouet Rustique" o convite para estar aqui em Pujols, uma localidade que tem tanto de antiguidade como de beleza. Assim, tenho a oportunidade de visitar “La maison du Jouet rustique” e conhecer pessoalmente o mestre do brinquedo rustique, Daniel Descomps.
Venho então falar-vos da importância da natureza, especialmente do mundo das plantas, na brincadeira da infância. A natureza é, então, como uma mãe que nos dá os recursos, para nós, através da imaginação, podermos passar o tempo de uma forma lúdica.
Estes passatempos que vos apresentarei centram-se essencialmente num espaço mais rural e num tempo mais recuado, embora ainda perdurem na memória de muitas pessoas.
Esta interação da criança com a natureza é muito importante, porque permite conhecê-la melhor, respeitá-la e estimular a sensibilidade artística presente na imitação de um mundo dos adultos.
A reinvenção do mundo é uma caraterística da arte e permite à criança viajar num mundo sem limites.
Os brinquedos e as brincadeiras com o recurso aos elementos da natureza apresentam uma grande simplicidade e efemeridade. São belas e passageiras como as flores silvestres.
De acordo com as estações do ano e com os seus recursos naturais, os jogos e brinquedos apresentavam um mundo diversificado, relacionado com as tarefas da casa, com o cozinhar, a moda, a construção de bonecas, certos jogos como a macaca e saltar à corda, entre outros. Por vezes, surgem alguns mais dinâmicos, mas também mais perigosos. Pode-se destacar o fabrico de pequenas armas e armadilhas, carros e carrinhos, pequenas construções e vários jogos onde se destacam a força e a velocidade.
De certa forma, estes brinquedos e brincadeiras fazem lembrar a função que o homem tinha numa sociedade primitiva.
João Pinto Costa
De qualquer forma, o universo do brinquedo e da brincadeira alimentava-se dos diferentes elementos da natureza: o elemento terra, através do contacto e da utilização da própria terra, através da utilização das árvores, arbustos, ramos, folhas, flores, frutos, cascas, caroços e sementes; o elemento água, com a construção de pequenos poços e represas, com a movimentação de pequenos barcos em linhas de água; o elemento ar, com os brinquedos que funcionavam com a força do vento, como o caso do vira-vento; e finalmente o elemento fogo que funciona como uma espécie de violação das regras, por ser proibido pelos adultos que diziam ”se brincas com o fogo, mijas na cama”.
Apesar disso, a criança, quando estava à lareira, tinha a tendência a pegar num pau aceso e fazer movimentos, como se estivesse a pintar num quadro imaginário. Também se imitava o lançamento de foguetes quando se juntava o pó produzido pela flor dos pinheiros, uma espécie de enxofre, se incendiava e lançava ao céu.
Era, no fundo, uma harmonia entre o mundo elementar e a criança, onde a imaginação e a liberdade tinham um espaço infinito. A força, a criatividade, a persistência, a resistência que se adquirem no contacto com a natureza fazem lembrar certamente o mito de Anteu, que devia a sua invencibilidade ao contacto com a mãe, Gea, isto é, a terra.
Dividirei então este mundo do brinquedo natural em vários continentes: o da alimentação e da vida doméstica, o dos adornos e adereços, o da representação dos animais, o dos transportes, o das armas, o da música, o das construções …
No mundo da alimentação e das refeições, as crianças imitavam o que se fazia em casa, como a preparação das refeições. Assim, no exterior e em contacto com a terra, utilizavam as ervas e plantas que mais se assemelhavam aos produtos utilizados pelos adultos.
Como exemplo, as orelhas de abade, um nome popular expressivo para o Umbilicus rupestris, (as orelhas do abade são grandes para ouvirem os pecados de toda uma população!!!) enfiadas num pequeno pau suspenso numa parede imitavam o fumeiro (os enchidos). A mesma planta servia para representar a batata e o arroz. As batatas fritas saíam também das folhas dos chorões (Carpobrotus edulis).
A omolete de espargos silvestres, bastante deliciosa, era representada pela planta Senecio vulgaris, em que a cor verde indica a presença de espargos e o amarelo são os ovos. A bola de azeite, doce ou pão tradicional da região de Trás-os-Montes, era representada pela bela flor amarela da planta Ranunculus caraterística pelo seu brilho, parece ser pincelada com azeite.
As folhas dos fetos (Pteridium aquilinum) e do lírio (Iris subbiflora) representavam os peixes. Até os queijos eram extraídos das plantas como o caso da flor da Jasione montana e dos frutos da malva. Para tempero, as folhas da Fumaria officinalis substituíam a verdadeira salsa. Para sobremesa fazia-se todo o tipo de bolos, juntando os limos e terra acumulados nos tanques de água, ou nos regatos. Com as folhas entrelaçadas do pinheiro representava-se o bacalhau seco, muito utilizado na culinária portuguesa. A Briza maxima fornecia os morangos para a sobremesa.
Para fazer estas refeições recorriam a panelas construídas com bugalhos, cestas com bolotas e castanhas, entre outros materiais, como o pé do diospiro como pires, enquanto uma parte da bolota do carvalho servia de chávena. Os garfos estavam presentes nas sementes da planta Erodium laciniatum. Com a casca de laranja e alguns paus contruía-se uma frigideira e os ovos prontos a fritar.
Quando se brincava às casinhas, era necessário colocar lá a mobília. Para isso, construíam-se pequenas cadeiras com as espigas da Setaria verticillata, uma vez que possuem a propriedade de se pegarem umas às outras como se fossem velcro e com os caules do fiolho.
Aqui temos um mundo do brinquedo muito ecológico, sem consequências nefastas para o planeta terra e que obriga a uma interação harmoniosa entre o homem e a natureza. Neste mundo de diversão, lembro a importância do artesanato de miniaturas como uma perpetuação da infância e dos seus brinquedos.
Para finalizar, recordo o homem que plantava árvores, de jean Giono, como uma metáfora da importância da árvore no equilíbrio do mundo e na paz.
Também aqui em Pujols, a casa do brinquedo rústico apela a um mundo de imaginação, liberdade, conhecimento e respeito pela natureza.
Obrigado, Daniel e obrigado Pujols.
N.B. A esta prelecção, seguiu-se a apresentação de um trabalho fotográfico ilustrativo dos brinquedos relacionados com as diferentes temáticas e de um atelier.
Pujols, Villeneuve- sur- Lot, França